Saúde
Quando o narcisista não é “o homem narcisista”: por dentro das relações que tantas mulheres vivem
Mas se a gente fica só nesse recorte, parece que o problema está em um tipo de homem, e não em uma lógica relacional que pode atravessar casa, trabalho, família, amizades e até espaços de cuidado. O que não aparece nos jornais é o número de mulheres que seguem, todos os dias, tentando sobreviver a vínculos que começam com fascínio e deslizam, centímetro por centímetro, para controle, desqualificação, medo e confusão.A engrenagem que faz esse roteiro funcionar costuma ser a mesma: violência psicológica. E violência psicológica não é um xingamento isolado, é método. É o isolamento disfarçado de zelo (“acho melhor você não andar tanto com ela, ela te influencia”), é a reescrita dos fatos até que a vítima duvide da própria memória (“não foi isso que eu disse, você tá inventando”), é o jogo de humilhação velado que vai corroendo a autoestima até que a mulher, que antes tinha critérios, passe a achar que está pedindo demais. É por isso que tantas mulheres inteligentes, independentes, com estudo e com rede, caem, porque não é sobre burrice, é sobre manipulação gradual.
Importante dizer com todas as letras: narcisismo patológico não tem gênero nem papel fixo. Existe a mulher narcisista, a mãe narcisista, o pai narcisista, o chefe narcisista, o colega que se aproxima com brilho e depois sabota. A lógica é a mesma, muda o cenário. Em família, o ataque costuma vir misturado com “preocupação”: críticas à aparência, à escolha de parceiro, ao modo de criar os filhos, tudo em nome do “eu sei o que é melhor pra você”. Há ainda as triangulações (um filho contra o outro, sobrinhos contra a mãe, nora contra sogra) e a vitimização quando há confronto (“olha o que você está me fazendo passar”). No trabalho, aparece como carisma inicial seguido de desautorização, invisibilização de ideias e necessidade de ser admirado o tempo todo. O eixo permanece: grandiosidade, fome de reconhecimento e um déficit real de empatia que transforma pessoas em instrumentos.
Por que isso pega tanto em mulheres? Porque muitas foram socializadas para agradar, para não causar, para administrar emoções alheias e para ler ambientes. Uma pessoa narcisista percebe isso rápido. Ela entende quem tem dificuldade de dizer “não”, quem sente culpa com facilidade, quem tem feridas de rejeição antigas, quem cresceu tentando merecer amor. E vai usar. Às vezes com charme. Às vezes com pena. Às vezes com ameaça. Mas sempre com o mesmo objetivo: manter o controle do campo emocional.
Se você se reconhece nesse cenário, dois movimentos costumam devolver o chão. O primeiro é contar a alguém de confiança para ter uma linha externa de realidade. Pessoas narcisistas trabalham com isolamento porque sabem que, se você narrar para uma terceira pessoa o que está acontecendo, a história perde o encanto e ganha proporção. Você mesma, ao ouvir-se contando, percebe onde está o abuso. O segundo é procurar orientação especializada, terapeuta, grupo de apoio, atendimento psicológico ou jurídico, dependendo do grau de risco. Há nuances importantes: nem toda relação dá para sair hoje, nem toda mulher tem autonomia financeira, nem toda mãe consegue se afastar de uma avó narcisista que ajuda no cuidado. Por isso o caminho precisa ser realista e seguro.
Informação não resolve tudo. Não cura trauma, não muda quem não quer mudar, não apaga anos de desqualificação. Mas informação dá nome às sombras e nomear é o início do limite e, muitas vezes, da salvação. Quando uma mulher passa de “acho que estou exagerando” para “isso é violência psicológica”, ela começa a reorganizar o mundo ao redor. Ela deixa de se ver como a culpada que “dramatiza” e passa a se ver como alguém que está lutando para sair de uma relação desigual.
É para isso que a Bloom fala sobre narcisismo: para que nenhuma mulher fique presa a um vínculo que a apaga em nome de um amor que nunca foi amor.