Saúde
Orthosomnia: quando a busca pelo sono perfeito vira obsessão

Um bom ponto de partida é observar o que acontece nas primeiras horas do dia. Muita gente acorda se sentindo bem e muda de humor depois de abrir o app e ver um “score ruim”. Isso tem explicação. Quando o sono vira desempenho, cresce a autovigilância do tipo “será que dormi direito”. Esse monitoramento aciona a fisiologia do alerta e pode piorar a noite seguinte. Soma-se a isso uma limitação técnica relevante. A maioria dos rastreadores infere sono a partir de movimento e frequência cardíaca. Eles distinguem relativamente bem dormir de estar acordado, porém ainda cometem erros na classificação de estágios como REM e sono profundo quando comparados à polissonografia, que é o padrão clínico. Por isso, sociedades médicas tratam esses dispositivos como ferramentas de bem-estar e educação, não como recurso para diagnosticar ou conduzir tratamento. Úteis, desde que usados com senso crítico.
Uma prática simples ajuda a recolocar o corpo no centro da conversa. Em três manhãs consecutivas, ao acordar, adie por 10 a 15 minutos a checagem do aplicativo. Primeiro, faça um check-in breve com perguntas diretas. Acordei restaurada ou restaurado? Como está o humor? Tenho energia para a primeira hora do dia? Só depois consulte os dados. Esse intervalo reduz a chance de reinterpretar a noite à luz de um número e devolve protagonismo às suas sensações, que são o melhor marcador de qualidade funcional do sono no curto prazo.
Vale também fortalecer o básico que funciona de maneira consistente. A luz da manhã é um sincronizador do relógio biológico. Exposição luminosa logo cedo aumenta o alerta diurno e ajuda a adiantar o horário natural de sono à noite. Sempre que possível, procure alguns minutos de luz externa pela manhã e, no período noturno, reduza a intensidade luminosa dos ambientes.
A cafeína pede um horário de corte. Evidências mostram que doses moderadas ainda prejudicam o sono quando consumidas até seis horas antes de deitar. Em rotina prática, muita gente se beneficia ao encerrar café, chás cafeinados, energéticos e refrigerantes na metade da tarde. Quem é mais sensível pode antecipar ainda mais.
Telas na cama somam dois problemas. O conteúdo costuma ser estimulante e a luz brilhante à noite pode suprimir melatonina, atrasar o relógio e reduzir a sonolência natural. Se for inevitável usar dispositivos à noite, reduza brilho, ative filtros e estabeleça um horário de desligar compatível com sua rotina.
Quando a dificuldade para adormecer ou manter o sono persiste por semanas e começa a comprometer o dia, a orientação baseada em evidências é procurar terapia cognitivo-comportamental para insônia. A CBT-I é recomendada como primeira linha de cuidado em adultos com insônia crônica e combina técnicas que reduzem a hiperalerta e reorganizam hábitos, com efeitos duráveis e sem os riscos de uso prolongado de medicamentos.
Dados orientam, não mandam. O aplicativo pode ser uma lente útil para perceber padrões, desde que não se torne juiz da sua noite. Coloque o corpo primeiro e os números depois. Dê prioridade à luz da manhã, ajuste o horário da cafeína, reserve a cama para dormir e trate telas como último recurso noturno. Amanhã ao acordar, antes de abrir o app, escolha um sinal do corpo para observar. Essa pequena inversão costuma ser o ponto que separa informação de obsessão.